Ideias para Debate

Saturday, January 29, 2005

Eliminar o lixo

Depois de um interregno provocado pela chegada de um certo número de textos comentando outros, continua a publicação da série de artigos do Elisio Macamo, subordinados ao título geral: O Que a Campanha não Debateu.


(4) Eliminar o lixo

No ano 315 havia 144 casas de banho públicas com autoclismo em Roma. Nos anos oitenta do século recentemente findo havia cerca de 400 casas de banho com autoclismo para cães na cidade de Paris. Por estas alturas o número deve ter aumentado. Em 2004, e muito provavelmente em 2005, 2006, 2007 e, porque não, 2015 – ano em que a pobreza deverá ter sido diminuída em metade no mundo, segundo os objectivos de desenvolvimento do milénio – não há nem uma única casa de banho pública na cidade de Maputo, capital da República de Moçambique. Já houve, mas o que já houve e não há, não há. E não vale contar as barreiras, as árvores, os muros nem mesmo as casas de banho dos centros comerciais.
Existem cálculos segundo os quais mais de 80 por cento das doenças que afectam muita gente nos países em desenvolvimento estão directamente ligadas à insalubridade. Essas doenças são responsáveis por cerca de 20 por cento de todos os óbitos que se verificam nestes mesmos países. Esse até é o mal menor. Quando alguém está doente não pode, provavelmente, ir ao serviço, à escola, isto é, não pode atender ao tipo de coisas que as pessoas fazem no seu quotidiano. E não só. Essa pessoa precisa de ser tratada, o que significa despesas para o Estado. Dentro da lógica capitalista da qual nos queremos apropriar isso não é necessariamente mau, mas para as pessoas afectadas, sobretudo, para os parentes mais próximos, pode ser uma catástrofe.
A morte podia ser, talvez, a solução mais eficiente se não houvesse o grande problema da importância que atribuímos aos funerais: mais uma vez, despesas para a família enlutada, perca de horas de serviço por parte de familiares, amigos e amigos de amigos, colegas e colegas de colegas. Por outro lado, a pessoa que morre leva consigo o investimento que a sociedade inteira fez nas suas capacidades. Um jovem recém-formado que morre de cólera, malária ou qualquer outra doença que resulte directamente do meio insalubre em que vivemos é pior disperdício para o País do que uma viagem de despedida do presidente cessante. Ou do que ir viver na diáspora, pois este pode contiuar ainda ligado à terra.
Toda a gente fala do lixo. É tema de composições musicais, de cartas iradas de leitores, de conversa em todos os cantos. É boa rima para quem quer contrastar com o luxo que define as desigualidades sociais no nosso meio. Há dois anos, o lixo cortou completamente uma via no bairro do Chamanculo, defronte do mercado de Diamantino, ou melhor, o lixo apoderou-se da rua perante a impávida serenidade dos moradores, vendedores e, naturalmente, do concelho municipal. Quem conheceu o bairro do Chamanculo – na verdade, qualquer bairro da cidade de Maputo – no tempo colonial precisa de muita força para ver o estado em que se encontra agora, sem ficar com a vontade de pôr o concelho municipal, os moradores, e todas as circunstâncias que explicam aquela degradação em chamas. Quando chove, formam-se charcos de água que se admiram da indiferença e dos níveis de tolerância dos moradores e demais. E a malária vai reclamando vidas, horas de serviço, velórios, chás, mais uma campa para servir no cemitério de Lhanguene no domingo de manhã e ir, por essa via, alimentando a ociosidade de todos quanto oferecem serviços periféricos lá.
Depois vão distribuir redes mosquiteiras, vão pintar veículos 4X4 com símbolos bonitos para dar a ideia de que estão a fazer qualquer coisa; vão fazer seminários, destacar políticos reformados para organizações internacionais que se ocupam da doença, criar unidades de combate de não sei quantos. Enquanto isso, o lixo vai disputar espaço com o povo e, sempre, admirando-se das facilidades que lhe são dadas. Assisti uma vez a um comício de Hélder Martins, então ministro da saúde, na cidade do Xai-Xai, em que exortava a cada um dos presentes a matar cinco moscas por dia como contribuição para a eliminação da doença. É bem possível que eu não tenha, na altura, percebido a ironia. Se calhar o que ele queria dizer é que o mais fácil era eliminar o lixo. Na altura a Frelimo era muito críptica e para perceber certos pronunciamentos era preciso consultar o relatório do comité central. Coisa que não fiz, é claro.
Não fica bem a um presidente definir o combate ao lixo como uma das suas prioridades. Parece reduzir a importância do cargo. Mas o lixo está a matar. E não só. O lixo é, talvez, um dos principais símbolos do nosso subdesenvolvimento. Nele está patente a nossa incapacidade de gerir a modernidade, de usar os meios modernos de administração de homens e coisas. É só tentar imaginar o tempo que se perde na cidade do Maputo estruturando o nosso quotidiano à volta da ausência de casas de banho públicas: se vou à baixa partindo de Malhazine tenho que calcular o meu tempo em função da regularidade das necessidades biológicas. A indiferença pela insalubridade está a nos obrigar a crescermos duas vezes: aprendemos na infância a não sujar as fraldas; hoje, já crescidos, temos que aprender a não sermos surpreendidos em plena baixa, sobretudo se não houver uma árvore jeitosa, isto é discreta e frondosa, pelo canto persistente e inadiável da necessidade biológica.
Camarada presidente, fraude como não, por favor...