Ideias para Debate

Monday, April 24, 2006

25 de Abril (2)

A 25 de Abril de 1974, eu era alferes miliciano, em Lisboa. Aqui vai o relato do que foi o meu dia:

Quando ocorreu o 25 de Abril eu era um dos oficiais milicianos mais antigos no Segundo Grupo de Companhias de Administração Militar.

A situação política do quartel era claramente anormal. Era o local onde estavam a ser acumulados todos os oficiais milicianos “suspeitos políticos” depois de terem sido reclassificados devido a terem ficha na PIDE.

Isto tinha dado como resultado que, de cerca de 50 oficiais que haveria no quartel naquela altura talvez mais de 40 eram “suspeitos políticos”.

Oficiais do quadro havia o comandante, se bem me lembro era um major Azevedo, o segundo comandante (não recordo o nome mas tinha a alcunha de Tigre!), um capitão, que era uma besta e tinha a alcunha de Boi, e mais dois ou três subalternos vindos de sargentos.

Dois dias antes do 25 de Abril fui abordado por um aspirante, João Anjos, que suponho que era do MÊS, que me informou que estava para breve o golpe. Para essa noite ou para a seguinte. Não acreditei.

Como nessa noite nada aconteceu, desliguei do assunto.

No próprio 25 de Abril eu era o Oficial de Dia ao quartel.

Durante a noite sou acordado telefonicamente por um amigo que pôs o radio junto do telefone para eu ouvir o comunicado do MFA. Afinal sempre tinha acontecido!

Telefonei para o quartel. Era de madrugada. Talvez umas 4 da manhã. Para meu espanto, do gabinete do telefonista atendeu o comandante! Segundo ele não estava a acontecer nada de especial!

Fardei-me e segui para o quartel, onde estavam a chegar quase todos os oficiais. Conforme entravamos o portão era fechado de novo e ninguém mais podia voltar a sair.

Quanto ao mais ninguém tomava posições. Por todo o lado as pessoas iam seguindo os acontecimentos pelo radio, mas lá dentro era como se estivessemos fora da realidade.

Tudo ficou assim até ao fim da manhã, altura em que me vieram dizer que estava ao portão um oficial do MFA que queria entrar. Mandei abrir e informei o comandante.

Fomos falar com o oficial (creio que também era major e, por coincidência, também se chamava Azevedo, mas não posso garantir, que já lá vai muito tempo). Estava o comandante, o segundo comandante e eu, como oficial de dia.

O homem do MFA disse que precisavam de fornecer alimentos às forças que estavam espalhadas pela cidade e necessitava de camiões para ir à Manutenção Militar buscar esses alimentos. Sabia que o nosso quartel tinha camiões.

Aconteceu então uma coisa que iria repetir-se. Olhei para o comandante, que não disse nada, e para o segundo comandante, que nada disse.

Informei o homem do MFA que lhe dava os camiões. Ele pediu oficiais para seguirem um em cada camião.

Mesma cena de antes com o silêncio dos dois responsaveis. Fui à sala de oficiais e pedi voluntários. Houve mais do que os necessários.

O oficial do MFA pediu, depois, armamento para esses voluntários e lá se repetiu a cena do silêncio. Forneci o armamento e lá seguiram eles.

Depois desta cena achei que não era possível continuar daquela forma. Eu estava a tomar decisões sem cobertura do comando da unidade e a assumir individualmente responsabilidades que poderiam custar caras se a coisa desse para o torto.

Convoquei uma reunião de todos os oficiais do quartel e exigi que, um por um, dissessem qual era a sua posição em relação ao que estava a acontecer. Como era de esperar a grande maioria aderiu ao movimento, incluindo, para minha surpresa, o segundo comandante.

O comandante, o capitão (Boi) e um ou dois dos subalternos do quadro não aderiram e foram postos sob prisão em quartos do quartel. Foram posteriormente entregues ao MFA.

A partir desse momento o quartel passou a estar ligado ao movimento e ainda participou, se bem me lembro, em alguns assaltos a casas da PIDE que existiam espalhadas pela cidade.

Bastantes anos mais tarde, numa celebração do 25 de Abril aqui em Maputo, vim a encontrar o tal homem do MFA que lá foi “desinquietar” os espíritos naquele famoso fim de manhã.

O João Anjos, também já esteve por cá, em Moçambique, mas na cidade da Beira.

E este foi o meu 25 de Abril. Nada de particularmente heroico, mas uma recordação inesquecível que hoje aqui partilho convosco.

10 Comments:

  • :

    Obrigada pela partilha. Não precisamos de heróis, esses... servem mortos.

    Bom 25 de Abril se assim o pensares ainda.

    :)

    By Anonymous Anonymous, at 1:26 PM  

  • Obrigado. Ocorre-me apenas dizer que este tipo de relatos faz muita falta. Lembro-me que há anos um académico britânico, Lionel Cliffe, me perguntou porque ninguém ia conversar com muitos tanzanianos que viveram de perto a história da Frelimo. Eram de idade avançada e estavam a desaparecer. Na altura eu tinha a intenção de escrever uma tese de doutoramento sobre Mondlane, mas depois meti-me noutras coisas. Estes relatos pessoais são muito importantes.

    By Blogger Elísio Macamo, at 12:49 AM  

  • Com todo o respeito, não creio que seja absolutamente necessário, do ponto de vista intelectual, ver o 25 de Abril como data histórica moçambicana. Muitos moçambicanos contribuíram bastante, mas é data histórica portuguesa. Os Acordos de Lusaka sim; a independência sim. E muitas outras datas. É bom recordar que o 25 de Abril não trouxe necessariamente melhor relacionamento entre Portugal e as suas colónias. Antes pelo contrário. Estou do lado do intelectual que disse não se tratar de uma data da história moçambicana, mas isso não é o mesmo que se demarcar.
    Abraços

    By Blogger Elísio Macamo, at 7:51 AM  

  • Mais uma vez com todo o respeito, insisto que o 25 de Abril não precisa, do ponto de vista intelectual, ser considerado data da história moçambicana. O meu comentário dirigia-se à confusão entre desmarcação (que acho incorrecto e insensato também pelas razões apontadas por Fátima Ribeiro) e data da história moçambicana. Que eu saiba, Israel não considera o fim da II Guerra Mundial data histórica, mas não se desmarca. É só disso que estou a falar. Agora, se o 25 de Abril tivesse conduzido a um melhor relacionamento entre Portugal e suas colónias com implicações para o nosso próprio devir histórico, haveria razões para o considerar data da história moçambicana. Isso não aconteceu. Portugal manteve as mesmas atitudes coloniais através de intromissão descarada em assuntos internos dos nossos países. O 25 de Abril foi a libertação dos portugueses e contém ensinamentos importantes, como muitas outras efemérides. A independência do Zimbabwe, o fim do Apartheid na África do Sul, a independência da Namíbia, etc., etc. datas da história desses países para as quais os moçambicanos deram muito de si. Não nos devemos desmarcar delas, sobretudo porque contam coisas interessantes como, por exemplo, a epopeia da liberdade.
    Abraços

    By Blogger Elísio Macamo, at 12:54 PM  

  • Bom, acho mesmo que o blog não é o lugar ideal para discutir concepções de história. Nem era essa a minha intenção. Entendi simplesmente a estupefação em relação ao intelectual moçambicano que disse que o 25 de Abril não era data da história moçambicana como uma reprimenda aos mocambicanos por recusarem aceitar a importância dessa data. E disso discordo. Não sei que mais era preciso fazer em Moçambique - fora da proclamação do 25 de Abril como data histórica - para documentar que se não se alheia da sua importância.
    Abraços

    By Blogger Elísio Macamo, at 11:02 AM  

  • Bom, é difícil discutir com alguém que intervém para dizer que não quer discutir, mas vai emitindo opiniões, interpelando, etc. Discutimos ou não? Onde?
    Fátima Ribeiro, por mim todos os dias podiam ser dias feriados. Motivos haverá sempre. É só puxar pela cabeça. Gostava apenas de propôr que se interpretasse a reluctância em atribuir importância ao 25 de Abril - se é que existe essa reluctância - como algo ligado à atitude do partido comunista português que quiz fazer depender a independência dos nossos países do fim do fascismo. Vamos acabar com o fascismo e tudo o resto virá. Nesse sentido - e não na vertente normativa sobre a qual a Fátima Ribeiro, com razão, insiste - de facto o 25 de Abril é completamente marginal a Moçambique. É coisa de portugueses. Com ou sem ele, a independência teria vindo.

    By Blogger Elísio Macamo, at 6:58 AM  

  • Prontos, parece que tudo já está esclarecido. Que pena, Fátima Ribeiro, que não estivesse a propôr mais um feriado. Aí tinha o meu apoio, só pelo dia feriado. JPT, é interessante que só agora que decidiu traduzir para o calão português é que o percebi... mais uma interpretação? Bom fim de semana a todos!

    By Blogger Elísio Macamo, at 6:08 AM  

  • As numerosas intervençoes sobre o “25 de Abril” aqui presentes parecem-me mto pertinentes. Na realidade exitem aqui 2 problemas diferentes, certo ligados e sem duvida indissociaveis, mas que nós temos todo o interesse em destinguir para clarificar a analyse: o primeiro refere-se à relaçao entre Portugal e as ex colonias; o segundo ao 25 de Abril enquanto “data historica”.
    Este ultimo problema remete-nos ele mesmo para duas questoes: 1) Sera que o “25 de Abril enquanto percursor de dinamicas de mudança pode ser considerado uma “data historica” para as ex-colonias portuguesa , nomeadamente, Angola, Cabo-verde, Guiné-bissau, Moçambique e Sao Tomé e Principe? Em outros termos, à luz das dynamicas de estruturaçao social dos paises supracitados qual é o significado de uma “uma data historica” ? 2)O que ha de comun entre o 25 de Abril - lugar de “sacralisaçao de liberdades”, “ponto de ruptura”, “inicio de emancipaçao” e feriados nacionais?
    Nada mais que, a Republica Portuguesa, tal como foi “fixada” e “ simbolizada” em contextos historicos especificos. Contextos estes que deixaram a sua “marca indelevel” em Angola, Cabo-verde, Guiné-bissau, Moçambique e Sao Tomé e Principe. Espolio de uma memoria do passado. A questao que se nos coloca agora é de saber se por um lado essa “memoria do passado” é nos nossos dias, para os nossos paises, realmente a imagem fiél desse passado Ou se, por outro lado, se trata simplesmente de reviver a memoria do 25 de abril , no caso para os comentarios mais diversos... ou para mais um dia de repouso...

    Entretanto, estou em querer que no inicio deste seculo XXI, a confrontaçao crescente entre as identidades socais locais, no contexto global mundial, tende sofregamente para à busca de soluçoes, que passam pela construçao da “identidade nacional” nos jovens paìses em questao.

    Contudo, estou de acordo com um certo numero de intervenientes que este debate é deveras complexo para ser restringido ao nivel do blog. Eu mesma , nao respondi a grande numero de questoes colocadas. Por isto, seria interessante poder organizar um debate, onde este assunto podesse ser tratado numa prespectiva multidisciplinar... lanço o repto a quem de direito.
    Cordialmente,
    Iolanda Aguiar

    By Blogger Iolanda Aguiar, at 2:19 AM  

  • como é que sendo o oficial de dia dormia fora do quartel?CP

    By Blogger - 1/2 Kg, at 10:12 AM  

  • Com um oficial de dia
    Que dormia
    Fora do quartel,
    A tropa que ali havia
    Por certo vivia
    Num grande bordel.

    By Blogger asm, at 1:57 PM  

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